Casamentos forçados para compensar "crimes de sangue" entre famílias rivais no Paquistão significam frequentemente maus tratos e morte. Na povoação de Khushab, há três irmãs a recusar o destino que lhes foi traçado, tentando deste modo forçar o Governo a impor a ilegalização de um costume tribal. Se não conseguirem, fizeram um pacto para se suicidarem.Por Graham Usher, em Sultanwala, Mianwali e Khushab (Paquistão)
Vivem numa espécie de exílio - três irmãs, três irmãos, uma mãe e um pai numa casa "segura" de Khushab, no Punjab setentrional paquistanês. Mesmo dentro de casa há um sentimento de sequestro. Como jornalista não posso falar directamente com as mulheres - uma colega tem de fazer a entrevista por mim. Mas posso ouvir as suas vozes. São esmagadoras."Vani é uma tirania", diz Amna, uma das irmãs. "Se tivermos de casar com aqueles rapazes, seria o mesmo que um assassínio. Sei que ao falar convosco dei um passo perigoso. Mas se não fizermos nada, o Governo não actuará. Para nós é uma espécie de jihad."Amna, Abda e Sajida Khan são noivas vani. Vani é um antigo costume tribal no Paquistão segundo o qual as raparigas são dadas em casamento para resolver um feudo de sangue entre duas famílias. Não se pretende que o vani seja nada mais do que um castigo, diz Zia-ullah Khan, um activista da comunidade local."Num casamento vani, não há toque de tambores, nem danças nem henna [tatuagem]. É como um funeral, porque a noiva vai sofrer até à morte. Será abusada, humilhada e geralmente tratada como escrava. Os pais rezarão pela sua morte, não só porque o vani, o crime, termina com a sua vida, mas também para a poupar."Ninguém sabe qual a difusão do vani no Paquistão. Não são mantidos registos oficiais e a sua prática é habitualmente desmentida. Na área de Mianwali, perto de Khushab, Zia-ullah diz que há 20 a 30 casos de vani numa comunidade de 30 mil pessoas. "Mas poderá haver muitos mais."Nos últimos seis anos, ele e outros têm estado a fazer campanha contra o vani. Em Janeiro deste ano, o Governo declarou finalmente a prática ilegal. Mas a lei é anulada por poderosas coligações de tradição, patriarcado e uma força policial que "não aprovam a emancipação das mulheres". É quase desconhecido que as vítimas do vani falem. Por isso é que Amna e as irmãs são tão importantes, diz Zia-ullah. "Se conseguirem, centenas de outras se seguirão."O seu calvário começou em 1991, quando Amna tinha 6 anos, Abda 4 e Sajida um. O seu tio, Mohammed Iqbal, abateu a tiro um primo na aldeia natal, Sultanwala. Um tribunal local considerou-o culpado de assassínio e condenou-o à morte. Nos quatro anos seguintes, viveu como um fugitivo, diz. Em 1995 foi convocado à jirga da aldeia, um conselho de anciãos formado por políticos locais, proprietários de terras e dirigentes religiosos, todos muito simpatizantes da família "agravada".Cinco minutos Pegando na arma que usou para matar o primo, Mohammed recorda a sentença. "O conselho era como uma gaiola. Disseram-me que para ser perdoado pelo assassínio devia entregar a minha filha em casamento, a filha de um dos meus irmãos e as três filhas de outro irmão. Concordei, por medo."O pai de Amna, Jehan Khan Niazi, estava na jirga. "Deram-nos cinco minutos para decidir e com uma arma apontada. Portanto, dei as minhas filhas em vani. Talvez tivesse sido cobarde, mas senti que a situação era perigosa." Amna não se lembra da sentença. "Tudo o que recordo é que a minha mãe chorou bastante", diz.Mas o pai tentou ultrapassar "a sangrenta tradição". Já levara a família para Khushab, a 80 quilómetros de Sultanwala. Fez isto não só por segurança, mas também para dar educação às filhas. "Há uma escola de raparigas em Sultanwala", diz. "E é usada para o gado."O investimento valeu a pena. Hoje Sajida está no último ano da escola, Abda está a preparar-se para um curso de Medicina e Amna faz um bacharelato em Literatura Inglesa. As três são apoiadas pelo pai. "Foram as raparigas que resistiram ao vani, não eu. Sou simplesmente o seu porta-voz", diz.O ano passado, a família rival esclareceu que se as raparigas não fossem dadas como noivas a vendetta seria renovada. Mohammed Aslan Khan é o tio do homem assassinado. Vive a menos de 400 metros da casa de Mohammed Iqbal, o assassino. Explica o que, para ele e para a sua tribo, é a lógica do caso."Somos aparentados e eles traíram-nos. Afrontaram a nossa honra. Segundo a nossa cultura pathan as raparigas já são nossas noras. Em qualquer caso, a lei contra o vani foi aprovada em 2005. O casamento foi acordado em 1995."Zia-ullah Khan pensa que a família rival pode ter razão. Tal como está redigida, é pouco claro se a lei é retroactiva. Em qualquer caso, não se pode levá-la à prática, declara, porque dá o mesmo castigo a quem fornece as noivas vani e a quem as recebe. "Não funciona. Nenhuma mulher no Punjab irá ao tribunal para ver os parentes detidos. É uma lei impossível."Amna e as irmãs não levam o caso ao tribunal. Apelam ao Supremo Tribunal do Paquistão e ao Presidente Musharraf e fazem-no por meio da imprensa. Até agora isto tem dado resultado. Têm sido escritos editoriais a seu favor, o serviço da BBC em língua urdu está a transmitir uma série de programas sobre vani, mulheres e organizações dos direitos humanos estão a fazer campanha vigorosa em seu nome. Mas os riscos são enormes. Arma junto à camaO mês passado, dois dos primos de Amna foram feridos a tiro quando andavam a lavrar os campos em Sultanwala. Quando ela vai à universidade, é acompanhada pelo irmão, que dorme com uma arma junto à cama. O pai ofereceu-se para deixar o emprego e vender a sua propriedade para indemnizar a família agravada. Sem resultado. "Se as raparigas recusam o casamento, a inimizade entre as duas famílias continuará e 200 pessoas morrerão", diz Mohammed Aslan Khan. "A paz depende deles."É talvez por isto que o caso das três irmãs está a ter impacto no Paquistão. Na essência coloca frente a frente dois sistemas antagónicos - um baseado na tribo, na tradição e na honra, outro na justiça, na lei e nos direitos. Ao falarem, Amna e as irmãs estão conscientemente a denunciar a hipocrisia do Governo."Penso que acabaremos por vencer", diz Amna. "Não será fácil. Será um longo processo. Poderá demorar anos. Mas temos o apoio da nossa família e de todas as mulheres do Paquistão. Também temos o apoio da nossa religião. Os estudiosos sabem que não existe promessa de vani no islão. E nós sabemos que ao seguirmos o caminho justo Deus nos dará força."Abda está menos certa de que a via que traçaram as levará à redenção. Apenas sabe que não querem seguir o caminho do Inferno."Se o Governo não actua para resolver o nosso caso, tanto por factos como pela lei, só há uma solução. Suicidamo-nos. Não estamos a brincar. Já fizemos o nossos pacto. Queimamo-nos vivas - não só em protesto contra o vani, mas para protestar contra os casamentos forçados, os assassínios pela honra e todas as outras opressões que as mulheres sofrem no Paquistão. Sei que alguns dirão que isto não é muçulmano. E têm razão - o suicídio não é islâmico. Mas o vani também não."